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O giz da educação vol.2 nº.3 (2021)
ISSN 2764-0477


Nutela ou Tutela?!


No mês da criança é importante falar sobre o estatuto da criança e do adolescente. Sou Conselheiro Tutelar há algum tempo e já vi coisas do arco da velha, sabe bem como diz aquele ditado: ‘há mais coisa entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia possa imaginar’, pois é! 


Ontem mesmo recebi uma denúncia em forma de cartinha. Ela tinha os seguintes dizeres e, segue a minha versão:

“Seu Conselheiro, o Senhor esteve na minha casa outro dia. Não sei o nome do meu pai. Nunca o vi. Sei que minha mãe sai todos os dias prá trabalhar, não me diz onde. Ela me pede para olhar a Cristina, minha irmã de apenas 3 anos, o Jonathan, de 2 anos e o mais novo, o Ilídio, com seis meses. Tenho ido para a escola, conforme o Senhor falou, mas o que será dos meus irmãos? Me chamo Talita, tenho 11 anos.”


Atendo muitas denúncias, mas não posso aplicar nenhum tipo de medida de punição, posso advertir, como fiz com a Célia, a mãe da Talita, mais nada. 


Então, diante daquele bilhetinho, escrito num pedaço de papel, fiz uma visita surpresa lá no barraco onde morava Talita. Uma única porta escorada por tapumes, na Vila do Buraco Quente, era amparada por duas telhas de amianto. A chuva deixava aquele cenário ainda mais sombrio. Bati na porta e nenhum sinal de morador. 


- Talita! Chamei.


À direita, no outro barracão, uma mulher alcoolizada respondeu:


- Tá aí não! Saiu com a mãe.  na Delegacia. Disse trôpega.


- E os menores, onde estão? Perguntei.


- Aí!


- Aí onde? Insisti.


- No barraco!


A mulher desapareceu em meio à viela e eu, com ajuda de outros moradores consegui entrar no local. No chão daquele cômodo fétido, o bebê dormia nos braços de uma corroída coberta e ao lado, duas crianças brincavam felizes. A menina carregava uma boneca, já descabelada, de rosto desfigurado e o Jonathan imaginava como seria aquele carrinho de plástico, se tivesse rodinhas. As moscas comiam os restos que ainda existiam nas latas, jogadas num canto.


- Essas crianças ficam aí jogadas Seu Doutor! Resmungava uma das moradoras que me ajudaram a entrar naquele local.


- Já falei com a Célia que eu chamaria a polícia prá ela! Outra vizinha sussurrava tão alto que eu conseguia ouvi-la.


- Vocês sabem onde eu posso encontrar a Dona Célia? Perguntei com voz firme.


- A Célia tá na pedra! (Gíria usada para informar sobre o uso de crack) Depois de seguir a mãe, a Talita descobriu o que a Célia estava fazendo e falou que iria denunciar. Eu já tinha orientado a menina a não fazer isso, a ficar quietinha, porque tudo passa, não é mesmo Seu Doutor. Mas ela insistiu, disse que aprendeu na escola que o certo é fazer isso, que tem um tal de ECA - eu nem sei o que é isso. Falei prá ela, que se ela denunciasse a mãe, elas perderiam a bolsa-família.  Eu avisei! Aí foi uma briga aqui, um alvoroço, seu moço... O tempo ficou quente! Porque quando a Célia tá sem essa tal pedrinha... ela vira uma capeta! Os meninos são todos meio irmãos, sabe Seu Doutor. Agora vou dizer uma coisa, eu acho mesmo que é obrigação da mais velha tomar conta dos menores, não é? Mas a menina tá virando mocinha, já pensa em namorar, já viu, né? Porque o Senhor não passa a tutela para uma das avós? Faz isso! Que futuro espera essas crianças


Deixei-as falando e dirigi-me até a Delegacia da região e avistei as duas. Na sala do Delegado. Lá elas seriam ouvidas e depois lavrados todos os procedimentos. Por fim, Talita seria encaminhada para um abrigo, onde suas feridas se tornariam cicatrizes e, quem sabe, ela escreveria um futuro de glória e sucesso!!?!! Quem sabe! Mas, naquele momento, seus olhos perdidos, buscavam nas paredes daquela sala, algo em que pudesse se entreter, que a fizesse sair daquele mundo de dor e sem cor, algo que escondesse aquela visibilidade adquirida ali, naquele lugar. Ao me ver, fitou-me como quem grita por socorro! Pude ouvir, no silêncio do seu olhar a mesma pergunta escrita naquele bilhetinho:


- O que será dos meus irmãos?


Os três estavam comigo e, como de praxe seguiriam o mesmo caminho de Talita, tudo conforme manda o Estatuto da Criança e do Adolescente.


Patiluc

“Esta é uma obra de ficção. O uso das metáforas foi a maneira encontrada para contar as vivências da autora, ao longo dos seus mais de 25 anos na área da educação. Atualmente, ela atua como Empreendedora Cultural e mantém a crença de que educação também é sinônimo de cultura."